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Pestilência no cárcere e o exílio primitivo

Atualizado: 24 de jun. de 2020


Em março de 2020, analisando a iminência dos danos causados pela COVID-19, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) expediu a recomendação nº 62, a fim de adotar medidas preventivas à propagação do vírus no sistema prisional. Dentre as providências, verificam-se estratégias ordinárias, como a máxima excepcionalidade nas prisões provisórias, a higienização nas unidades prisionais, assistência médica, atenção aos grupos de risco e a concessão de liberdade par


a esses, considerando suas fragilidades (ou seria também a conhecida insalubridade do sistema carcerário?)

Contudo, mesmo sendo direitos fundamentais, pétreos e previstos em legislação (art. 5º, XLVII, XLIX, L, LIV, LVII, 6º e 196, da CF, e art. 1º, 10 e 11, da Lei 7210/84, v.g.), a recomendação foi objeto de rejeição, inclusive pela Associação Nacional de Membros do Ministério Público Pró-sociedade (ADPF 660/DF). No mesmo sentido, o Ministro Luiz Fux mencionou que, não o encarceramento durante a pandemia, mas a soltura na mesma época poderia criar “política criminal perversa e de danos irreversíveis”.

O Ministro Marco Aurélio chegou a emitir uma “conclamação” aos juízes das Varas de Execução Penal para que implementassem as recomendações do CNJ (ADPF 347 TPI/DF), movimento que foi rejeitado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). O Ministro Alexandre de Morais alertou que a efetivação das recomendações exigiria uma megaoperação dos juízes e a Corte apontou que o Poder Executivo já teria agido em favor da população carcerária.



Na ponderação trazida pelo plenário do STF, rejeitando a recomendação nº 62, lembremos que o risco de morte de indivíduos foi posicionado num grau inferir aos esforços operacionais da dita megaoperação dos magistrados das Varas de Execução. Aceitou-se (ou decidiu-se), portanto, a morte das mulheres e homens presos (ver MBEMBE, 2016).

Diante dos fatos, vê-se que o fenômeno da pandemia demonstrou que os direitos fundamentais e sociais, além de não adotados no sistema carcerário em períodos de inconstitucionalidade habitual, também não serão trazidos aos cidadãos encarcerados em momentos excepcionais e desastrosos, os quais costumam despertar empatia. Dessa forma, de onde surge a aceitação do estado de coisas inconstitucional, não só tácita, mas expressamente? Para a sociedade brasileira, qual seria a finalidade da pena?

No Código Penal, nota-se, sobre a pena, que “o juiz (a) estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime” (art. 59). Numa cultura onde houve várias conciliações, sobretudo do estamento burocrático (FAORO, 2001), e, por outro lado, impregnada por uma desigualdade social profunda, não surpreende a sobrevivência de dois conceitos inconciliáveis no mesmo dispositivo legal.

Sobre a manifestação legislativa, além da coexistência, existe entendimento pela não prevalência entre a reprovação e a prevenção. Esta dita teoria mista ou unificadora, como se observa, foi adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro (MARQUES, 2016).

Contudo, aliado a ineficiência dos elementos da teoria, o recente endosso jurisprudencial pela perpetuação da notória desumanização da população carcerária nos leva a crer que as funções ressocializadora e neutralizadora nunca foram e, provavelmente, nunca serão políticas de Estado em governos com as configurações construídas até hoje (o que nos deixa bastante distantes das teses da prevenção especial, positiva e negativa).

Da mesma forma, o movimento estatal pela morte dos encarcerados – com dolo eventual? – em nome da segurança (que é uma sensação) pública se afasta daqueles objetivos de prevenir o cometimento de infrações por meio da simples intimidação (prevenção geral negativa) ou pela sugestão ou inserção dos “bons” valores sociais na consciência geral (prevenção geral positiva).

Então, poderíamos afirmar que nos resta apenas a retribuição. Contudo, observando o comportamento estatal na pandemia, não há como afirmar que a pena seria apenas uma compensação maléfica a outro mal (a infração), numa reparação que existe como um fim em si. Aquela sanção, em verdade, é um meio para algo, um instrumento para objetivos não descritos nas teorias relativas (sendo mais do que um castigo).

Verifica-se que os holofotes do Estado não se direcionaram aos encarcerados para assegurar seus direitos fundamentais com o mesmo afinco em que rastrearam seus crimes. Com a citada reação jurisprudencial e social às recomendações do CNJ avalia-se se a população encarcerada, de fato, é sujeito de direito na perspectiva sociopolítica brasileira.

Em outras palavras, é necessário constatar se a finalidade da pena ainda repousa na “vingança de sangue”, ou seja, se consideramos que os infratores, mesmo antes do cometimento da infração, seriam considerados cidadãos ou não. Como exemplo, considerando-os como “inimigos” (direito penal do inimigo), “não-nacionais” ou “não-pessoas”, a sociedade pode conceber a pena como uma vingança pelo crime cometido contra seus pares (sua classe ou sua real “nação”) ou seu ordenamento (que não é aplicado aos inimigos, apátridas de fato).



Por outro lado, se eram considerados membros do país onde residiam antes do cometimento do crime, deve-se analisar se os apenados continuam a ser identificados pela sociedade brasileira como cidadãos e, portanto, sujeitos de direitos fundamentais. Na comunidade primitiva, quando um membro de um grupo cometia uma ofensa poderia, não só ser expulso, mas alvo de desterro, ou seja, completamente destituído da tutela jurídica e religiosa, pois considerado “inimigo da paz” (e da nação).

Segundo essa antiga concepção, a morte daquele que sofre o desterro não é mais considerada ofensa (ou infração), ele não integra a sociedade ou o ambiente, é um excomungado, destituído das leis sociais e divinas. E quais indivíduos continuam a prestar assistências aos encarcerados se não o seu grupo, seus familiares, cônjuges e amigos? Além desses, só restam aqueles poucos que entendem a realidade.

O desolador cenário da pandemia revela-se como uma dolorosa oportunidade de reconstruir a sociedade global, sobretudo a brasileira, refazendo nossa compreensão a respeito de uma realidade física, sobre a qual não podemos mais protelar a concordância: tudo está intrinsecamente ligado, toda a humanidade e essa com seu ambiente, e seria extremamente improdutiva uma vingança contra si ou impossível o desterro de alguém que não poderia – fisicamente – deixar de fazer parte.


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