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Receber Auxilio emergencial indevido é crime?


Na atual pandemia a qual estamos submetidos, vários temas subjacentes à saúde pública foram levados ao crivo das pessoas, nas mais diversas áreas. Questões políticas, econômicas, diplomáticas e, como sempre, jurídicas.

E é justamente no aspecto jurídico que esse artigo se propõe a fazer uma breve discussão, sem querer, de forma alguma, esgotar o tema ou trazer respostas definitivas. Buscamos reflexões, tão ausentes cotidianamente.

Durante os últimos dias, muitas notícias foram veiculadas na imprensa nacional e estadual, dando conta que pessoas supostamente abastadas e que não fazem jus, receberam e estão recebendo o auxílio emergencial financeiro, de valor de seiscentos reais, criado pelo Governo Federal para socorrer pessoas hipossuficientes, que, enquadradas nos requisitos prévios, não teriam ou teriam profundas dificuldades financeiras em sobreviver nessa época de pandemia e letargia econômica.

Logo, iniciou-se um movimento largo e indevido de exposição incorreta de nomes e dados dessas pessoas, notadamente em redes sociais. Vários servidores públicos também estavam ali catalogados pelo Tribunal da Mídia.

A questão aqui descrita gravita em torno de: há crime nessa conduta?

E a resposta é que, em tese, pode haver sim. Porém, o objetivo desse artigo não é lançar dardos inquisitoriais contra ninguém. Para isso, já há quem faça muito bem, como estamos vendo. O foco aqui se desloca em alertar as pessoas que nem todas ou muitas dessas condutas não são delituosas, podendo ser até imorais ou amorais, entretanto, nem sempre delituosas.

Ancorados na súmula 17 (quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido), do Superior Tribunal de Justiça, faremos a análise-média tendo por base o delito de estelionato, previsto no artigo 171, do Código Penal, que, na opinião desses autores, talvez seja o tipo criminal que, via de regra, melhor se amolda aos fatos.

Previsto no Código Penal brasileiro, é um crime que traz em seu âmago o ardil, a fraude, o engano, não por acaso, é batizado de crime artístico, pelo eminente professor Guilherme de Souza Nucci (Curso de Direito Penal, volume 02, página 491, ano 2018), pois, segundo ele, assim como uma peça teatral, ali está a representação de um ato fictício e/ou ilusório, só que com a intenção de obter vantagem indevida de outrem, diferentemente de uma autentica representação artística.

Todavia, fazendo uma análise mais detida no tipo criminal aqui escolhido em cotejo com os requisitos postos pelo Governo Federal para receber o auxílio, vê-se alguns sobressaltos fáticos e jurídicos.

A premissa inicial para análise da conduta de quem supostamente recebeu o auxílio emergencial sem que fizesse parte do grupo de pessoas para as quais o benefício foi criado, é entender quais são os requisitos para a concessão do auxílio e de que maneira se dá a triagem para a escolha os beneficiários entre os inscritos.



A lei n. º 13.982/20, que instituiu o auxílio, traz no seu artigo 2º os requisitos de elegibilidade para o recebimento do benefício social:


Art. 2º Durante o período de 3 (três) meses, a contar da publicação desta Lei, será concedido auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais) mensais ao trabalhador que cumpra cumulativamente os seguintes requisitos:
I – seja maior de 18 (dezoito) anos de idade, salvo no caso de mães adolescentes; (Redação dada pela Lei nº 13.998, de 2020)
II – não tenha emprego formal ativo;
III – não seja titular de benefício previdenciário ou assistencial ou beneficiário do seguro-desemprego ou de programa de transferência de renda federal, ressalvado, nos termos dos §§ 1º e 2º, o Bolsa Família;
IV – cuja renda familiar mensal per capita seja de até 1/2 (meio) salário-mínimo ou a renda familiar mensal total seja de até 3 (três) salários mínimos;
V – que, no ano de 2018, não tenha recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70 (vinte e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove reais e setenta centavos); e
VI – que exerça atividade na condição de:
a) microempreendedor individual (MEI);
b) contribuinte individual do Regime Geral de Previdência Social que contribua na forma do caput ou do inciso I do § 2º do art. 21 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991; ou
c) trabalhador informal, seja empregado, autônomo ou desempregado, de qualquer natureza, inclusive o intermitente inativo, inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) até 20 de março de 2020, ou que, nos termos de autodeclaração, cumpra o requisito do inciso IV.

A regulamentação do referido diploma legal foi feita por meio do Decreto n. º 10.316/20, que instituiu competências e procedimentos para a operacionalização do auxílio desde a sua solicitação até o pagamento. No que interessa ao debate em questão, o decreto diz no seu art. 5º que, para ter acesso ao auxílio emergencial, o trabalhador deve estar inscrito no Cadastro Único até 20/03/2020 (inciso I) ou preencher o formulário disponível na plataforma digital fazendo autodeclaração das informações necessárias (inciso II).

Ainda nos termos do decreto, feito o preenchimento do cadastro, as informações fornecidas pelo cidadão serão cruzadas com a base de dados do governo federal para análise de atendimento aos requisitos legais, em seguida, os nomes dos aprovados serão incluídos na folha de pagamento (art. 6º).

A verificação dos critérios de elegibilidade via análise do cruzamento de dados e o repasse dos aprovados à instituição financeira é responsabilidade de empresa pública de processamento de dados, no caso, a Dataprev, mediante autorização do Ministério da Economia (art. 4º, inciso II, b).

Feitas tais considerações sobre o funcionamento do programa de auxílio-emergencial, passa-se a analisar a conduta do cidadão que, supostamente, recebeu indevidamente, uma vez que não se enquadrava nos requisitos, os valores disponibilizados pelo governo federal durante a pandemia.

Como vimos, o requerente que preenche o formulário na plataforma digital faz a autodeclaração dos dados, sem a necessidade de comprovar documentalmente o seu conteúdo. Ato contínuo, a Dataprev realiza um cruzamento de dados nas bases do poder público para analisar a conformidade das informações inseridas no cadastro e o consequente enquadramento ou não daquele cidadão nas hipóteses de recebimento do auxílio. Daí, surgem duas possíveis condutas que serão a seguir traçadas.

Primeiro, levemos em consideração o indivíduo que não se enquadrava nos requisitos legais, mas, mesmo assim, preencheu o formulário com as informações verdadeiras e, por uma falha na análise dos dados por parte do poder público, teve o cadastro aprovado e recebeu o auxílio. Entendemos que tal conduta não se coaduna a qualquer figura típica, pois não houve ação ou omissão criminosa por parte do agente, poderia até se falar em medidas cíveis ou administrativas para buscar a devolução dos valores bem como na reprovabilidade moral, mas nada que interessasse ao direito penal, tendo em vista a atipicidade do fato.

Na outra hipótese temos o agente que, também não se enquadrando nas situações aptas a auferir o auxílio, insere, de maneira dolosa, informações falsas na plataforma digital e consegue ludibriar o sistema para ter seu cadastro aprovado e o consequente recebimento do dinheiro. Nesta situação, em tese, já haveria uma conduta criminosa.

Ao inserir declaração falsa no formulário (meio fraudulento) a fim de alterar sua inelegibilidade para o recebimento do auxílio, o agente pratica, em tese, a conduta tipificada como falsidade ideológica, prevista no art. 299 do código penal. Entretanto, a falsidade aí teria como propósito a prática de um suposto estelionato, o recebimento indevido dos valores, exaurindo-se o falso nesta última conduta delituosa. Desta feita, estaríamos diante de um clássico caso de aplicação do princípio da consunção, onde o estelionato (crime fim) absorveria a falsidade ideológica (crime meio), conforme enunciado da Súmula n. 17 do STJ.

Restaria, então, a conduta abstratamente enquadrada na figura típica do estelionato, pois o agente teria usado de meio fraudulento para obter indevidamente o auxílio em prejuízo do erário. O crime de estelionato, tipificado no art. 171 do Código Penal, prevê pena de um a cinco anos de reclusão e multa, porém, o parágrafo terceiro traz a figura do estelionato qualificado, aumentando-se em um terço a pena quando o crime é praticado contra entidade de direito público.



Poderia cogitar-se ainda, hipoteticamente, a figura do crime tentado de estelionato quando o cidadão, inserindo os dados falsos na plataforma digital (ato executório), não conseguisse ter o cadastro aprovado porque o cruzamento dos dados revelou a inconsistência das informações. Haveria, nesse caso, um fato alheio à vontade do agente que impediu a consumação do delito.

Quanto à natureza da ação penal, não se aplica a exigência de representação do ofendido trazida pela novel Lei n.º 13.964/19, pois trata-se de hipótese excepcional prevista no art. 171, §5º, inciso I do Código Penal, uma vez que a vítima seria administração pública, mantendo-se assim a natureza pública incondicionada da ação penal.

Outro viés diz respeito a questão de um terceiro utilizar o nome e dados de um cidadão, para receber o benefício. Aí seria um caso de fato atípico, devendo o cidadão buscar as autoridades e noticiar tal situação constrangedora.

Várias questões específicas de natureza fática, a depender do caso concreto, também podem militar em favor de despenalizar a conduta, como, por exemplo, uma pessoa, apesar de pertencer a uma família abastada, todavia ter sua fonte de renda independente dela e ter essa renda sido abalada com a crise atual.

Como dito acima, o tema não é simples e muito menos esse texto tem por condão esgotá-lo, ante as multifacetadas apresentadas. Queremos apenas instigar a reflexão e tentar contribuir com o bom debate jurídico, mas, principalmente a cautela e responsabilidade no trato de questões sérias e complexas.

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